domingo, maio 13, 2012

Mundo quadrado


Quando eu era pequena, uma vez perguntei a minha mãe porque eu não enxergava de longe. Ela me respondeu que era normal, que a partir de uma distância a gente não enxerga mesmo. No carro, à noite, eu dizia que enxergava as luzes dos carros e as luzes do aeroporto da cidade como grandes bolas. Eu acho que meus pais achavam que eu estava inventando. Aos nove anos, a “nerdinha” da sala foi recolocada no fundão, para acalmar os ânimos do pessoal (imagine o quanto eu gostei de ser popular e ficar no fundo, sem assunto, servindo como um “cala a boca, galera”). Eu aprendi a ler aos 6 anos, no Jardim III com as revistinhas da Turma da Mônica. Fui oradora da turma de formatura porque eu já sabia ler e todo mundo ficou orgulhoso de mim. Então, aos nove anos, no fundão, a professora me pede para ler na lousa. Minha resposta infantil foi: “Eu não sei ler, fessora”. Ela recomendou à minha mãe que me levasse no oftalmo.

Fiz os exames e comecei a usar óculos. Mas não se engane, achando que eu usava míseros 0,25 em cada lado. Meu primeiro par de óculos tinha um grau um tanto assustador: 2,75. Lembro que minha mãe perguntou porque eu nunca disse que não enxergava de longe. Mas é que quando ela disse que a partir de uma certa distância a gente não enxergava direito, eu achei que tava tudo certo. Só que a minha distância só era bem menor do que o normal. Meu primeiro óculos era da Turma da Mônica, formato gatinho, roxo em cima, rosa em baixo. Adorava aquele óculos! Mas com ele, vieram algumas limitações. Tive que deixar o time de handebol, não pude mais jogar volei com todo mundo, e até as aulas de judô ficaram mais limitadas.

Depois do gatinho roxo e rosa, veio um marrom grandão, um preto, um sem armação, um com meia armação preta e, finalmente o meu atual, totalmente fechado e vinho. Escolher óculos era sempre uma tortura porque eu sabia que ia mudar completamente meu rosto. Mas me acostumei a enxergar o mundo assim, meio quadrado. Saltei do sky coster sem ver onde estava de verdade, e tranquilizei um menininho na montanha russa quando ele me perguntou “você não está com medo da altura?” Eu, sem óculos, sem enxergar um palmo na frente do meu nariz, respondi “claro que não”. E ele se acalmou e se divertiu.

Nadar sem enxergar é como nadar num mundo translúcido verde ou azul. Algo bem parecido com a forma que Saramago descreve a cegueira branca. É nadar num mundo aquático lodoso. A primeira vez que mergulhei de lentes e óculos para mergulho, eu chorei. Jamais imaginei como o mundo embaixo d'água pudesse ser tão lindo. Ir ver filmes de terror era muito cômodo. Para não parecer uma medrosa completa, eu tirava os óculos e ficava admirando uma tela gigantesca em blur. Quando estava com raiva do mundo todo, pegava meu fone de ouvido e tirava os óculos. Nada mais importava. Não via mais ninguém.

A única forma de me fazer chorar imediatamente: quebrando meus óculos. Uma vez fui atropelada (por uma bicicleta) e a primeira coisa que eu disse quando abri os olhos foi perguntar pelos óculos. Uma pessoa embaçada me respondeu que um carro tinha passado por cima deles. Comecei a chorar. Treinando dança de espada, risquei uma lente; caí no berreiro. Minhas lembranças bêbadas são todas embaçadas. Não por causa do álcool. Mas porque alguém sempre tirava meus óculos e eu nunca soube de verdade quem me ajudava.

Eis que amanhã irei fazer a cirurgia de miopia. Meus atuais 5,50 (e 1,75 de astigmatismo) poderão se dissipar para sempre. A cirurgia não me dá certeza completa de que nunca mais terei miopia. E a grossura da minha córnea permite que eu faça essa cirurgia apenas uma vez. Tenho uma única chance de nunca mais usar óculos.

Sinceramente, não sei se estou feliz por essa perspectiva. Me acostumei com o mundo widescreen, com a opção de enxergar ou de ignorar o mundo à minha volta. Eu até tomo banho de óculos para poder lavá-lo durante o banho e deixá-lo sem gordura e limpinho. Costumo dizer que quando acordo, a primeira coisa que eu faço é “por os óculos”; os outros abrem os olhos. Para mim, de nada vai adiantar abrir os olhos, não vou enxergar nada mesmo.

Estou apavorada com essa cirurgia. Não sei se irei me acostumar com o mundo sem bordas, sem sujeira. Com a probabilidade de eu poder passar rímel e não bater os cílios na lente. Com a chance de ver o mundo embaixo d'água perfeitamente. E principalmente, não sei se irei me acostumar a me ver sem óculos. Sei que meu grau é alto e todos me perguntam “mas você não vai fazer a cirurgia?” mas me acostumei com esse par de vidro que me protege do mundo.